Esqueça as telas de smartphone poluídas por dezenas de aplicativos. Na China, tudo pode ser resolvido por um único app. O WeChat –ou Weixin, como é chamado em seu país de origem– é um verdadeiro canivete suíço digital com quase 1 bilhão de usuários.

Com ele, pode-se resolver quase todos os problemas da vida cotidiana em poucos cliques, especialmente na China, onde o aplicativoconta com mais funcionalidades. É possível pedir comida, consultar um médico, reservar pacotes de viagem, paquerar, comprar todo tipo de produto, chamar um táxi, ver postagens de amigos, checar fanpages e ainda pagar do cafezinho ao novo automóvel. Mais: um programa piloto, chamado de WeChat ID e já utilizado na cidade de Guangzhou (antiga Cantão) e em cortes de um distrito de Pequim, permite armazenar os dados de documentos do usuário para que ele possa utilizar o aplicativo como identificação oficial. Tudo isso convenientemente centralizado em um só lugar – e sob o olhar sempre atento das autoridades chinesas.

“Para mim, o mais importante são as trocas de mensagens, nem tanto a função social. Gosto, inclusive, do fato de podermos escolher se nossas postagens ficarão online indefinidamente, por seis meses ou por três dias”, diz a estudante Jiang Xuetong, 21, da Universidade de Comunicações de Pequim.

Ela é mais uma dentre os milhões de usuários do WeChat. Xuetong, no entanto, prefere aplicativos separados para realizar outras tarefas, como pedir comida ou chamar um táxi. Para a estudante, apps exclusivos acabam sendo mais completos.

A gerente de marketing e de branding Marta Cheng, 27 anos, também é desse time. “O WeChat é para bate-papo e para curtir as postagens”, diz referindo-se a uma função que, na versão em português do programa, ganhou o nome de “Momentos”. Cheng diz que não costuma usar o WeChat para pedir comida ou andar de táxi, mas confessa ser adepta de uma outra funcionalidade: as consultas médicas online. “Não pego fila, não há deslocamento. Poupa muito tempo”, diz. O pagamento é feito através do próprio WeChat.

A dona do faz-tudo dos smartphones é a poderosa Tencent, uma gigante chinesa da internet avaliada em 500 bilhões de dólares — montante suficiente para elevar a companhia ao clube de titãs da tecnologia, como Apple, Amazon e Facebook. Fundada em 1998 na cidade de Shenzhen, não muito distante de Hong Kong, a Tencent é um centro de inovação digital. Muito da vitalidade financeira da empresa se deve ao WeChat, mas o aplicativo não surgiu por acaso: a Tencent entendia como ninguém sobre trocas de mensagem na China já no início dos anos 2000 graças ao seu comunicador QQ, semelhante ao quase extinto MSN Messenger e usado principalmente em PCs.

Com a migração massiva para o mundo mobile —jargão empresarial que denota o uso de celulares e tablets conectados à Internet para a realização de tarefas antes feitas em computadores–, a companhia se aproveitou da base de usuários do QQ e do knowhow adquirido com ele para lançar um serviço ao mesmo tempo mais leve e mais atraente para celulares.

De acordo com o Centro de Rede de Informação da Internet da China (CNNIC, na sigla em inglês), dos 772 milhões de internautas chineses registrados até o final de 2017, 97,5% estavam conectados pelo celular. Surgido em 2012 com esse público em mente, o WeChat era originalmente usado para bate-papos — uma versão oriental do WhatsApp.

Big Brother chinês

Cinco anos depois, o aplicativo evoluiu, tornando-se onipresente na vida chinesa. Segundo relatório divulgado pela Tencent, no segundo trimestre de 2017, o WeChat possuía 963 milhões de contas ativas (a diferença numérica se deve aos usuários com contas no exterior e às contas de marcas e lojas). Com essa escala, é possível imaginar o volume monumental de dados de usuários coletados pelo aplicativo e o valor disso para as autoridades do país, que adotam uma política de ampla vigilância sobre o que seus habitantes fazem online, e para o marketing direcionado. Do monitoramento de conversas triviais a hábitos de consumo dos usuários, tudo fica registrado e centralizado.

O controle obviamente é maior sobre o que se passa dentro das fronteiras chinesas — o WeChat possui diferentes funções disponíveis para quem está dentro ou fora do país. Os filtros que monitoram o que é ou não permitido compartilhar também mudam de acordo com a localização geográfica de quem usa o programa.

A China é extremamente sensível em relação ao conteúdo que permite circular em seu território e possui uma política bastante rigorosa de policiamento digital: assuntos que as autoridades do país consideram prejudiciais a seus interesses são simplesmente interceptados e banidos.

Além de instalar filtros nos servidores e impor regras de conduta a pessoas e a empresas, algumas vezes a censura chinesa é ainda mais explícita: sites, aplicativos e redes sociais são simplesmente tirados do ar no país. O resultado disso é que quem navega online na China encontra uma versão muito particular da Internet, algo que mais lembra uma imensa intranet.

A escala populacional chinesa (são mais de 1,4 bilhão de habitantes, ou 6,5 vezes a população do Brasil) e o aumento da renda local tornam o país extremamente atrativo para quem pode abocanhar uma fatia desse vasto mercado — quem está de fora, não participa da festa. Uma das vítimas recentes do sistema chinês é o próprio WhatsApp. Dependendo do momento, o compartilhamento de fotos ou áudio fica mais difícil. Frequentemente, torna-se simplesmente impossível utilizar o app na China. A explicação: como o programa permite trocas de mensagem –ou telefonemas– de forma criptografada, preservando as informações dos usuários e dificultando a bisbilhotice alheia, ele acabou entrando na lista negra dos censores chineses, da qual há anos fazem parte Google, Facebook, YouTube, Twitter e Instagram.

O segredo do sucesso

O WeChat estourou mesmo ao incorporar um serviço que a rival Alibaba (no Brasil, conhecida por sua subsidiária AliExpress) dominava: o de pagamento digital através de carteiras virtuais, cuja movimentação se dá pela transferência de dinheiro a partir de códigos QR (uma espécie de código de barras) escaneados.

O superapp já se utilizava de códigos QR como atalhos para ligar o mundo offline ao online. Um uso comum dos códigos QR até então era a oferta de mais informações sobre produtos: bastava escanear o código em uma embalagem para ser levado ao website da marca. O WeChat também utilizava essa tecnologia para criar as contas de cada novo usuário (chamadas de IDs) e isso acabou por facilitar a criação de seu próprio serviço de pagamentos e de carteira digital, o WeChatPay. O sucesso foi estrondoso e imediato. Segundo a CNNIC, cerca de 530 milhões de usuários de pagamento online usaram smartphones para suas transações em 2017, com a Tencent ocupando a segunda posição no mercado chinês — atrás apenas do serviço AliPay, da gigante Alibaba.

Os pagamentos digitais na China movimentam hoje cerca de 4 trilhões de dólares ao ano — é cerca de um terço do polpudo produto interno bruto (PIB) nacional. O sucesso dessa modalidade de pagamentos tem explicação: em um país onde grande parte da população não possui conta em banco e no qual há pouca adesão ao cartão de crédito ou de débito, o dinheiro em papel imperava até 2015. A partir daí, a tecnologia via smartphone tornou-se mais eficiente e passou a atrair mais usuários.

A regulamentação chinesa na área financeira é bastante liberal e permite a empresas atuarem quase como bancos. Isso impulsionou o boom do setor de tecnologia financeira no país. A Tencent fez uma leitura acertada do potencial do mercado e explorou as brechas da legislação chinesa para se tornar o banco dos sem-conta bancária.

Dois usuários do WeChat podem transferir entre si, de uma só vez, até 5 mil yuans (cerca de 2,5 mil reais) em segundos, sem taxa alguma. O dinheiro para a transferência pode vir da própria carteira virtual do aplicativo, previamente abastecida com créditos, ou ainda partir de qualquer conta bancária vinculada ao sistema, além de cartões de crédito e débito registrados. No caso de pagamentos feitos com dinheiro armazenado na carteira virtual, não é necessário nem mesmo estar online para utilizar o serviço.

A incorporação da carteira ao WeChat gerou uma avalanche de parcerias e aquisições, interligando serviços para fisgar o usuário. O aplicativo DiDi, que reúne serviços de táxi e carros particulares e que comprou recentemente a brasileira 99, é um belo exemplo de como a evolução do WeChat influenciou a sorte de outras empresas chinesas. Sua principal competidora era o Uber na China, mas quando a DiDi aliou-se à Tencent e, por consequência, ao sistema WeChatPay, viu seu número de usuários crescer exponencialmente. Bastava um clique no WeChat para confirmar o pagamento da corrida e sair do carro. Não sobrou espaço para a competição. Resultado: a DiDi cresceu tanto que acabou por adquiriu a operação local do Uber.

Tudo o que você queria, antes mesmo que você soubesse

O universo WeChat foi se expandindo de tal maneira que seria quase ingenuidade da Tencent não se aproveitar das informações coletadas para prever as necessidades ou desejos de cada usuário, garantindo a permanência e a utilização do ecossistema do aplicativo através da integração entre serviços e promoções.

Um usuário do WeChat tem pouco estímulo para deixar de usar o aplicativo. Além de centralizar seus contatos e sua vida social online, ele vai recebendo vantagens pelo uso da plataforma, com descontos progressivos por fidelidade e ações de marketing extremamente personalizadas graças às informações coletadas e disponibilizadas pelo WeChat a seus diversos parceiros. As  preferências de uma população cuja classe média só cresce e para a qual privacidade digital é um conceito distante são uma ferramenta comercial valiosa.

As possibilidades criadas por esse nível detalhado de informações faz com que a já imensa gama de parceiros do WeChat continue crescendo: de serviços de bicicletas compartilhadas –outra febre urbana chinesa, na qual as bikes não possuem estações fixas e podem ser estacionadas ou alugadas em qualquer lugar– à reserva de bilhetes de trens e de ônibus, às compras no supermercado ou de novos móveis para casa. Cada vez mais, é possível resolver as burocracias e necessidades do cotidiano sem sair do WeChat.

A vida do usuário é rastreada 24h por dia. Seus hábitos de consumo, valores gastos com diferentes serviços, dados sobre os transportes utilizados, as distâncias percorridas, as calorias ingeridas e hábitos alimentares, tudo sendo digerido pelos papas do big data. A publicidade é constante e certeira: a Tencent faturou 1 bilhão de dólares com anúncios só no segundo trimestre de 2017.

Adeus, YouTubers!

Como no Brasil, os influenciadores digitais acabam se tornando garotos-propaganda para diversas marcas. Na China, saem os YouTubers e entram os perfis populares do WeChat.

Ashley Dudarenok, fundadora da agência digital Chozan e especialista em mídias sociais chinesas, lembra-se de um episódio recente bastante ilustrativo: para o lançamento chinês do Mini, um dos modelos de carro produzido pela BMW, foi feito um acordo de cooperação com a blogueira Becky’s Fantasy (黎贝卡的异想世界, WeChat ID: Miss_Shopping_li), que possui mais de 130 milhões de seguidores só no WeChat.

A ideia era vender cem Minis em edição promocional na cor azul caribe durante o lançamento. A blogueira simplesmente escreveu dois artigos –sobre o carro e sobre a cor–, encorajando seus seguidores a participarem de uma venda exclusiva e relâmpago do veículo com a pintura especial. O resultado? Becky vendeu os cem carros, avaliados em quase 30 milhões de yuans (5 milhões de dólares), em apenas quatro minutos. Os pagamentos estavam todos confirmados e finalizados dentro de 50 minutos.

Fonte: https://veja.abril.com.br/